Uma Vida Reduzida a Rastros: Aspectos da Condição Urbana na Obra de João Gilberto Noll
Uma das características mais marcantes da literatura contemporânea é a representação do modo conturbado com que o homem se relaciona com a metrópole moderna, que muitas vezes é apresentada como símbolo do sistema capitalista ou como suporte de uma ordem segregadora. O senso comum parece ter projetado nas grandes cidades a imagem de um lugar marcado pela incerteza e pelo infortúnio – o cenário perfeito para o escoamento das relações humanas. Por esse motivo, não faltam exemplos de personagens que vagam perdidos pelas ruas da cidade, sujeitos a se desintegrarem a qualquer instante. O filósofo alemão Walter Benjamin já relacionava a experiência da metrópole com um tipo de sujeito volátil que peregrinava meio sem rumo pela cidade. De certo modo, é exatamente essa conjuntura que arquiteta o romance Rastros do verão, do escritor gaúcho João Gilberto Noll. O livro narra em primeira pessoa a história de um indivíduo que toma um ônibus no Rio de Janeiro e segue com destino para Porto Alegre na véspera da quarta-feira de cinzas. Lá chegando, o sujeito perambula pela cidade deserta, levando como bagagem apenas as suas velhas lembranças. Induzido a lidar com diferentes experiências, o espaço é captado por várias perspectivas intelectuais e sensoriais. A todo momento, a lembrança da cidade vista no passado se choca com a imagem da cidade pela qual ele caminha no presente, criando a visão de um mundo um tanto atordoado, embora ainda sereno. Tudo isso ratifica a importância do papel da percepção para a construção do espaço, conforme assinalam os estudos de Merleau-Ponty acerca do assunto. O principal objetivo deste trabalho, portanto, é fazer uma análise da configuração do espaço no romance Rastros do verão, tomando como ponto de partida o seu processo de redução estrutural. Pretende-se mostrar que o espaço urbano delineado nessa obra figura como elemento estrutural que revela aspectos de natureza social e psicológica. Isso significa que a categoria do espaço comporta dados sobre o tempo, a sociedade e práxis da contemporaneidade. Para evidenciar o aspecto estilístico da obra, em alguns momentos serão estabelecidas relações com o seu livro Mínimos, múltiplos, comuns. Pode-se dizer que, no romance de Noll, mais do que apresentar a visão de um andarilho da cidade, o escritor possibilita que o leitor faça um passeio pela própria condição humana. No fim das contas, percebe-se que o espaço delineado na obra figura como testemunho da decomposição do sujeito contemporâneo.