Do Alimento à Lembrança: a Cozinha na Lírica de Maria Lúcia dal Farra
Os sentidos humanos constituem uma das formas de o homem se relacionar com espaço. Dependendo da distância estabelecida entre o corpo do sujeito e a realidade circundante, tais sentidos apresentam maior ou menor teor de objetividade na ação de interagir com o mundo. A visão, por exemplo, possibilita o máximo de distanciamento ao passo que o paladar oferece a maior proximidade com o espaço, uma vez que um segmento do mundo é levado para dentro do corpo. Em ensaio publicado no livro Antologia da alimentação brasileira (2008), João Chagas afirma que a maneira como as pessoas comem constitui um mecanismo de se penetrar em sua vida íntima, compreender seus gostos e identificar seu caráter. Leonardo Arroyo, por sua vez, mostra que os traços culturais de um estado ou até mesmo de um país podem ser facilmente reconhecidos através de sua culinária, especialmente quando se adentra na cozinha – um espaço simbolicamente marcado pela cordialidade, afeto e integração. Na lírica de Maria Lúcia dal Farra, a vida íntima do sujeito lírico e as cenas coletivas e familiares são retratadas através de cômodos e objetos espalhados pela casa. O objetivo deste trabalho, portanto, é mostrar que o espaço da cozinha, por meio de alguns alimentos (como o bolo, a polenta, o cuscuz, os temperos e o bife a parmegiana) e utensílios domésticos (a chaleira e o fogão), evidencia as relações familiares e intimistas, despertando uma gama de lembranças no seio do eu-lírico. Para tal finalidade, observamos o modo como os sentimentos do eu-lírico são projetados nos objetos presentes nesse espaço da casa e nos alimentos consumidos durante as refeições. Serão analisados os poemas “Culinária frugal”, “Puberdade”, “Resgate”, “Substância”, “Culinária”, “Receita de parmegiana”, “Biografia” e “Autógrafo”, todos retirados do Livro de auras (1994). Concluímos, então, que no espaço da cozinha, o eu-lírico se valeu da representação dos alimentos para evidenciar segmentos de sua cultura, quase sempre revelados através da sexualidade e da lembrança de momentos vividos na infância nesse cômodo. Pode-se dizer, portanto, que a cozinha é capaz de comportar tanto os traços culturais de uma sociedade quanto as características individuais do ser humano.